sábado, 30 de julho de 2016

AASE

Um eucalipto rasgava os tormentos do barraco de papelão. Papeis mortos na sarjeta de uma deploração ocidentável. Acidentes conglomerados nos paralelepípedos um dia antes da fome ser satisfeita nos paralelos de um meridiano sem mundo. Ela havia dedicado a vida para o menino. O morro e Pedro. Seu filho agora tinha se perdido em suas vielas... à Aase não restava nada mais além dos recortes de uma solidão impressa no lixo voador. Circo de um país dançante. Arena de bastidores ignorantes e larápios comedores de sucata humana. Eles venceriam as próximas eleições… os pesadelos disformes do medo daquela mulher. Uma mãe deplorável. Ainda teve que escutar algo como “a culpa foi sua… quem mandou me colocar no mundo”… filhos mendicantes ou chefes do tráfico?... de pessoas, de almas descartáveis, de vícios mesquinhos, de prazeres moribundos, os olhos mortos repetindo-se ad eterno na página do jornal… uma fogueira de papel para esquentar as suas duras mãos. Era o frio rasgando as paredes de jornal do amotinado de recicláveis abrigos favelados. Eles comiam lixo para poderem voar. Os urubus da sarjeta… eles tinham um coração de homem, e uma dor sensível de abandonada criança. Asas negras da escuridão da noite vazia. O eucalipto surgia do meio da sala. Se é que aquela latrina pudesse usufruir de alguma classificação imobiliária. Seus olhos esparramados com o fogo chamuscado dessa noite de frio. Aase chorava seu filho desregrado. Ele havia se perdido no morro.  Condenado ao exílio, resolveu armar-se para destruir suas presas do passado. Selvas depredadas no meio da pedra no caminho. Tinha uma pedra no meio do cachimbo... no meio do cachimbo tinha uma...Selva! Todos esses silêncios não passavam mais. Não falavam mais. Não choravam mais. Um arame farpado enroscado na dor do muro. Um pneu de bicicleta agarrado no carrinho de milho. Um tênis podre desmanchando-se na fiação elétrica. Eram pedaços humanos apodrecendo no mundo. Ninguém estaria lá. Nem mesmo seu filho. Nem mesmo Deus. Os ratos sorriam nas cartas marcadas do baralho. Os ases do morro só. Pele de um sofrimento atroz. Por que nasceram assim? Esses detritos da humanidade. Ela olhava para o reboco de uma lágrima e escorregava as mãos pela flanela de seu vestidinho. Tremia sem sequer perceber. Os trapalhões sorrindo na parede. Uma estação perene de inverno sem luz. A garrafa de coca cola esmagando a aridez do asfalto. Ela sobrevivia no deserto da cidade. Morta. Parada. Encostada no eucalipto de seu barraco. Como era linda a potência viva da árvore. Por um instante tudo parecia viver sem dor. Quando aquelas folhas atingiam o céu. Arranhavam o azul do lar eterno. Por um instante tudo parecia natural. As costelas de um cachorro na pele dos homens. Magros e infelizes. Ele não iria voltar mais. Morreu com um chumbo na cicatriz pulsante do coração. A mãe dormia no frio, e na esperança de um dia, logo, conseguir ser tudo menos invisível... aprender como nesse mundo de cão, ela poderia falar com os mortos.  

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