Era
uma fada de avental no uniforme costurado de um simples balcão. A magia tinha
se consumido, porém sua ancestralidade cigana ainda brilhava na lente opaca de
um óculos de lentes bifocais. Ela trabalhava numa loja de óculos, e vendia
lentes no colorido da armação. Armaria num só golpe de um destino frustrado um
novo começo de um fim repartido sempre nas 40 horas semanais. Estava tudo
igual no cemitério ocular dos vivos míopes de fantasia. Morgana costumava ler
as cartas de um tarô herdado da fada mãe, como as runas e a borra de café. Mas
nos arredores dos dias últimos não lia sequer seu feitiço escorrendo pelo cilho
deprimido. Lágrimas descartadas do baralho dos jogos de azar. Um lábio meigo
porém vincado pela seca do verão passado enfeitava seu rosto como um pingente
marinho adormecido no fundo do mar. Sempre um dia atrás da ultima estação, seus
olhos não lembravam mais como poderia fazer para transformar a loja numa tenda
de sonhos vivos. Tinha perdido sua mágica no meio do caminho, e por mais que tentasse
reviver seu poder de visão a cada cliente perdido nos olhos vítreos do
ocultismo comercial, tudo não passava de um amarelo sorriso mal feito atrás do
silêncio falante do carnívoro balcão. As vezes chorava para dentro, quando
estava quase para finalizar uma venda, temendo que uma lágrima inconveniente e
indomável pudesse arruinar as tantas muitas migalhas do passivo de sua suada
comissão. Era algo que não podia controlar, e como um vento passando pela tarde
morna, simplesmente surgia sem aviso, essa lágrima broto nascente do canto
deserto dos olhos ainda vivos. Um lago profundo por trás das lentes rasas. O
olhar por trás da suspensão cristalina sobre hastes assassinas. A haste como apoio da distorção em olhos enxergando apenas o visível suportavam o cabresto de pálpebras
escondendo um abismo por demais insondável. Era o seu próprio mistério no
assassinato de sua imprevisibilidade. O mistério de não haver mais mistério...
como ainda poderia expressar sua comiseração por uma maga presa no corpo solene
de uma aprazível vendedora de óculos? Não enxergava seu próprio fim ,
enaltecendo sempre as horas do fim do expediente. Nem sequer mais o licor das
pingas intempestivas tragava sem dó. A dó quando o não de sim mesma. O cigarro
também não fazia mais parte de sua solene deterioração. Uma cigana deformada
pela continuidade do tempo castrador. Vivia a deformação dos dedos enrugados no
desgaste de um tédio senil. Era jovem porém envelhecida. Era meiga porém
amargurada. Era livre no mundo, porém prisioneira do fado. Somente havia tempo
para resguardar o próximo dia sem tempo numa rotina interminável. Queria ler as
mãos delicadas de cada cliente de sua tenda nas entranhas de uma loja. Não podia, era contra o protocolo.
Não podia tocar nas mãos de seda daquelas pessoas de tecidos mágicos e
orgânicos. Os rostos coloridos das mil faces por trás de uma medíocre intenção
consumista. Sonhos se evaporavam conjuntamente a cada gole do outro invencível
em sua frente, impenetrável, intempestivo, impossível! Anacrônicos desencontros perfeitos. Cada
segundo para além do presente descartado era um corte na retina de seu destino.
Um premonitório sonho falante tinha lhe dito que sua mágica havia sido roubada por uma bruxa, e
somente furando os olhos da falsa aparição ela poderia reaver seu livre encanto
pela liberdade da vida. Não podia mais continuar. Teria que voltar a enxergar através
da simplicidade do toque. Não poder tocar aquelas tantas mãos lhe cegava o tato
da alma visionária. Ela lembrava que um dia tinha amado. Lembrava que tinha
lido suas próprias mãos diante de um espelho mágico antes de entrar para a
loja do horror. No dia dos vaticínios próprios ela foi avisada que não deveria entrar
para um labirinto sem saída. Todos os labirintos poderiam ser vencidos desde
que haja uma saída. Naquele não havia. Não havia portas, sequer paredes, muros,
curvas, arcabouços, tetos, janelas, buracos, vielas, contravenções... Nada, não havia nada em torno dessa elipse existencial. Eclipse dos
sanatórios comuns disfarçados de simples cafezinhos no fim apocalíptico da
tarde eterna. Apenas uma loja vazia cheia de óculos caros e bem acabados. Não
podia mais ver o final da história sem enxergar os outros morando sobre cutâneos da pele ardida do seu desejo ressentido. Os milagres do subterrâneo. Foi nesse último dia de verão que Morgana transcendeu o narcótico efeito da
onírica paralisia. Um instante antes de finalizar a venda, ela tremeu. A haste na metamorfose da faca. O sonho e sua
terrível libertária voz. Era uma semente do pesadelo de não viver outra vez. A última
cliente. Não havia como voltar mais atrás. Seria um novo começo numa outra
possível libertadora prisão. Um grito, e uma socialite cegada pela fatal e
intuída explosão. Morgana sem reprimir-se, enfiou cegamente aquela haste YSL
nas profundezas das carnes do olho de uma cliente misteriosa, enfeitada por
joias e plumas de faisão, que nas colunas sociais, era vulgarmente conhecida
como “ a feiticeira”.... um grito de liberdade, óculos novos nos sonhos
mórbidos apodrecidos atrás das grades, e uma algema no pulso livre para quebrar
a rotina, destruir uma determinada visão e terminar um pouco menos sem graça com a desgraça
do fim do expediente...
Para celebrar o último mês de tratamento hepático, me proponho a escrever um conto por dia, por 28 dias, contando a partir de hoje, com o tema "MULHERES DESENCANTADAS", que reunirá heroínas do nosso imaginário literário universal na pele de nossas mulheres contemporâneas, comuns, e extra..ordinárias!! Uma singela homenagem para essas mulheres essenciais nessa exaustiva luta que travamos diariamente para não devorarmos o próprio fígado!
conseguir olhar, pelo tato... magia, ocultismo vaporoso...👏🏼👏🏼
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