quinta-feira, 28 de julho de 2016

MORGANA

Era uma fada de avental no uniforme costurado de um simples balcão. A magia tinha se consumido, porém sua ancestralidade cigana ainda brilhava na lente opaca de um óculos de lentes bifocais. Ela trabalhava numa loja de óculos, e vendia lentes no colorido da armação. Armaria num só golpe de um destino frustrado um novo começo de um fim repartido sempre nas 40 horas semanais. Estava tudo igual no cemitério ocular dos vivos míopes de fantasia. Morgana costumava ler as cartas de um tarô herdado da fada mãe, como as runas e a borra de café. Mas nos arredores dos dias últimos não lia sequer seu feitiço escorrendo pelo cilho deprimido. Lágrimas descartadas do baralho dos jogos de azar. Um lábio meigo porém vincado pela seca do verão passado enfeitava seu rosto como um pingente marinho adormecido no fundo do mar. Sempre um dia atrás da ultima estação, seus olhos não lembravam mais como poderia fazer para transformar a loja numa tenda de sonhos vivos. Tinha perdido sua mágica no meio do caminho, e por mais que tentasse reviver seu poder de visão a cada cliente perdido nos olhos vítreos do ocultismo comercial, tudo não passava de um amarelo sorriso mal feito atrás do silêncio falante do carnívoro balcão. As vezes chorava para dentro, quando estava quase para finalizar uma venda, temendo que uma lágrima inconveniente e indomável pudesse arruinar as tantas muitas migalhas do passivo de sua suada comissão. Era algo que não podia controlar, e como um vento passando pela tarde morna, simplesmente surgia sem aviso, essa lágrima broto nascente do canto deserto dos olhos ainda vivos. Um lago profundo por trás das lentes rasas. O olhar por trás da suspensão cristalina sobre hastes assassinas. A haste como apoio da distorção em olhos enxergando apenas o visível suportavam o cabresto de pálpebras escondendo um abismo por demais insondável. Era o seu próprio mistério no assassinato de sua imprevisibilidade. O mistério de não haver mais mistério... como ainda poderia expressar sua comiseração por uma maga presa no corpo solene de uma aprazível vendedora de óculos? Não enxergava seu próprio fim , enaltecendo sempre as horas do fim do expediente. Nem sequer mais o licor das pingas intempestivas tragava sem dó. A dó quando o não de sim mesma. O cigarro também não fazia mais parte de sua solene deterioração. Uma cigana deformada pela continuidade do tempo castrador. Vivia a deformação dos dedos enrugados no desgaste de um tédio senil. Era jovem porém envelhecida. Era meiga porém amargurada. Era livre no mundo, porém prisioneira do fado. Somente havia tempo para resguardar o próximo dia sem tempo numa rotina interminável. Queria ler as mãos delicadas de cada cliente de sua tenda nas entranhas de uma loja. Não podia, era contra o protocolo. Não podia tocar nas mãos de seda daquelas pessoas de tecidos mágicos e orgânicos. Os rostos coloridos das mil faces por trás de uma medíocre intenção consumista. Sonhos se evaporavam conjuntamente a cada gole do outro invencível em sua frente, impenetrável, intempestivo, impossível! Anacrônicos desencontros perfeitos. Cada segundo para além do presente descartado era um corte na retina de seu destino. Um premonitório sonho falante tinha lhe dito que sua mágica havia sido roubada por uma bruxa, e somente furando os olhos da falsa aparição ela poderia reaver seu livre encanto pela liberdade da vida. Não podia mais continuar. Teria que voltar a enxergar através da simplicidade do toque. Não poder tocar aquelas tantas mãos lhe cegava o tato da alma visionária. Ela lembrava que um dia tinha amado. Lembrava que tinha lido suas próprias mãos diante de um espelho mágico antes de entrar para a loja do horror. No dia dos vaticínios próprios ela foi avisada que não deveria entrar para um labirinto sem saída. Todos os labirintos poderiam ser vencidos desde que haja uma saída. Naquele não havia. Não havia portas, sequer paredes, muros, curvas, arcabouços, tetos, janelas, buracos, vielas, contravenções... Nada, não havia nada em torno dessa elipse existencial. Eclipse dos sanatórios comuns disfarçados de simples cafezinhos no fim apocalíptico da tarde eterna. Apenas uma loja vazia cheia de óculos caros e bem acabados. Não podia mais ver o final da história sem enxergar os outros morando sobre cutâneos da pele ardida do seu desejo ressentido. Os milagres do subterrâneo. Foi nesse último dia de verão que Morgana transcendeu o narcótico efeito da onírica paralisia. Um instante antes de finalizar a venda, ela tremeu.  A haste na metamorfose da faca. O sonho e sua terrível libertária voz. Era uma semente do pesadelo de não viver outra vez. A última cliente. Não havia como voltar mais atrás. Seria um novo começo numa outra possível libertadora prisão. Um grito, e uma socialite cegada pela fatal e intuída explosão. Morgana sem reprimir-se, enfiou cegamente aquela haste YSL nas profundezas das carnes do olho de uma cliente misteriosa, enfeitada por joias e plumas de faisão, que nas colunas sociais, era vulgarmente conhecida como “ a feiticeira”.... um grito de liberdade, óculos novos nos sonhos mórbidos apodrecidos atrás das grades, e uma algema no pulso livre para quebrar a rotina, destruir uma determinada visão e terminar um pouco menos sem graça com a desgraça do fim do expediente...



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