domingo, 31 de julho de 2016

HELENA


Uma beleza atroz de cortar os pulsos. Homem no mundo  suportava sustentar uma vida ao seu lado. Deveria ficar confinada dentro daquelas quatro paredes. Apodrecendo. Vivia  no  interior de muralhas cuja queda prescindiria por pouco seu tão esperado envelhecimento. Feia e velha poderia voltar ao mundo. Não  incomodaria mais ninguém. Ela pagou o preço por ter um interior correspondente a sua pele. Era boa e interminavelmente bela. Nada recatada para sua desgraça. Talvez não  fosse tão espontaneamente justa. Não  sempre. Mas afinal, era apenas uma mulher num mundo onde até os deuses são desumanos. Helena vincava a dor de ser tão ou mais solitária em apenas um reflexo do seu triste espelho perdido na cabeceira. As belezas deveriam ser mudas. Essas tinham o direito de viver a vida das homenageadas do lar. A terra dos mancos de face. Uma feiura podre reinava numa misericórdia fingida da sociedade da compaixão mesquinha. Egoísta. Falsa. Desesperados para gozarem com o próprio falo, condenavam qualquer lábio que se desse o direito de possuir os homens pela cabeça e ao mesmo tempo pelo coração. Essas seriam as bruxas nas fogueiras santas...digitais impressas na armadilha manjada da rede de um simbólico marido horroroso e aleijado. Helena ardia em labaredas de mortos enfileirados no seu jardim. Todos sorrindo do outro lado da margem com binóculos fálicos e espúrios. As lentes dos famigerados insatisfeitos. Esqueletos vivos, com as peles descascadas. O povo das deformações. Como era horrível ser bela num mundo de horrores. Como era violento enraivecer os vermes por características imutáveis, que nada na vida conseguiria negar. Se ao menos fosse uma porta, poderia abrir-se para fora da muralha. Mas a translúcida luz perpassava todos olhos na pele de sua escancarada janela como um raio no céu meteórico do reino absoluto do sol. Solo para morrer em retaguarda na trincheira vazia. Sem guerra...sem paz! Helena na lenda do dia sem fim.  Solo despovoado e raízes fecundas. Fenomenais. Feéricas.... Era esse seu solilóquio estelar. As estrelas condenadas a nascerem e morrerem só. Na distância de uma poeira alheia, intergaláctica, espacial, Helena brilhava fria dentro das muralhas de sua prisão. Morta por antecipação da vida radiosa. Ela rasgava os versos do sorriso delineado na dor vermelha do batom. Era sua própria escultura e aprendia a satisfazer-se com o desprezo que tanto lhe ensinaram. Desprezava a possibilidade de saída. O labirinto se fechava em torno de seus músculos bem formados. Seios lácteos na via do universo perfeito. Ela deveria morrer envenenada de si mesma. Esse foi o veredicto dos deformados sorridentes. Assassinos socráticos do mais belo dos filósofos. Impecáveis. Se ao menos soubesse, teria uma vez no passado se fingido de muda. Uma cadela morta... bem adestrada, essas que batem palma no comício do circo Vostok! Mas agora era tarde demais. A inconfundível voz da sua beleza já havia singrado os quatro cantos do mundo. Beleza mortal. Depressa deveria morrer. Podre e sozinha. Era um sádico jogo de percepções mútuas e tácitas. Onde o fora fingia não  olhar para dentro e vice versa. Os tijolos de vidro de sua muralha mágica. E o dentro sorria. E o fora sorria de volta. Cada um no limite árduo de seu próprio flagelo. Os frutos apodreceriam antes das flores. As flores nasceriam mortas. O mundo não  os conheceria.. seus belos filhos...! Helena somente enlouquecia na sobriedade de uma resistência insípida. Lentamente, como eles haviam planejado, sem sequer notar! Nenhuma guerra seria travada por sua alma. Nenhum herói iria morrer por ela. Sequer um único cavaleiro fantasma... os simulacros de iscas eram apenas provocações para apressar ainda mais sua partida onde tão esperado alívio seria brindado com um suspiro comum. Até que no meio dia crepuscular, o esperado aconteceu. Ela achou que ele tinha aparecido. Narciso hercúleo e o resgate fatal. Por engano, fazia amor com o espelho da cabeceira. Que cavalo!!! Mal criado...Mudo. Gritava.... com a explosão de sua contida ferocidade orgástica ele partiu no meio. O sangue de seu pulso aberto pelo vidro escorria serenamente pelos degraus inalcançáveis da muralha estendida sobre o tapete mórbido no  zoológico na escada....e da poça vermelha de sangue diz a lenda que brotou um cavalo mágico com asas...

sábado, 30 de julho de 2016

AASE

Um eucalipto rasgava os tormentos do barraco de papelão. Papeis mortos na sarjeta de uma deploração ocidentável. Acidentes conglomerados nos paralelepípedos um dia antes da fome ser satisfeita nos paralelos de um meridiano sem mundo. Ela havia dedicado a vida para o menino. O morro e Pedro. Seu filho agora tinha se perdido em suas vielas... à Aase não restava nada mais além dos recortes de uma solidão impressa no lixo voador. Circo de um país dançante. Arena de bastidores ignorantes e larápios comedores de sucata humana. Eles venceriam as próximas eleições… os pesadelos disformes do medo daquela mulher. Uma mãe deplorável. Ainda teve que escutar algo como “a culpa foi sua… quem mandou me colocar no mundo”… filhos mendicantes ou chefes do tráfico?... de pessoas, de almas descartáveis, de vícios mesquinhos, de prazeres moribundos, os olhos mortos repetindo-se ad eterno na página do jornal… uma fogueira de papel para esquentar as suas duras mãos. Era o frio rasgando as paredes de jornal do amotinado de recicláveis abrigos favelados. Eles comiam lixo para poderem voar. Os urubus da sarjeta… eles tinham um coração de homem, e uma dor sensível de abandonada criança. Asas negras da escuridão da noite vazia. O eucalipto surgia do meio da sala. Se é que aquela latrina pudesse usufruir de alguma classificação imobiliária. Seus olhos esparramados com o fogo chamuscado dessa noite de frio. Aase chorava seu filho desregrado. Ele havia se perdido no morro.  Condenado ao exílio, resolveu armar-se para destruir suas presas do passado. Selvas depredadas no meio da pedra no caminho. Tinha uma pedra no meio do cachimbo... no meio do cachimbo tinha uma...Selva! Todos esses silêncios não passavam mais. Não falavam mais. Não choravam mais. Um arame farpado enroscado na dor do muro. Um pneu de bicicleta agarrado no carrinho de milho. Um tênis podre desmanchando-se na fiação elétrica. Eram pedaços humanos apodrecendo no mundo. Ninguém estaria lá. Nem mesmo seu filho. Nem mesmo Deus. Os ratos sorriam nas cartas marcadas do baralho. Os ases do morro só. Pele de um sofrimento atroz. Por que nasceram assim? Esses detritos da humanidade. Ela olhava para o reboco de uma lágrima e escorregava as mãos pela flanela de seu vestidinho. Tremia sem sequer perceber. Os trapalhões sorrindo na parede. Uma estação perene de inverno sem luz. A garrafa de coca cola esmagando a aridez do asfalto. Ela sobrevivia no deserto da cidade. Morta. Parada. Encostada no eucalipto de seu barraco. Como era linda a potência viva da árvore. Por um instante tudo parecia viver sem dor. Quando aquelas folhas atingiam o céu. Arranhavam o azul do lar eterno. Por um instante tudo parecia natural. As costelas de um cachorro na pele dos homens. Magros e infelizes. Ele não iria voltar mais. Morreu com um chumbo na cicatriz pulsante do coração. A mãe dormia no frio, e na esperança de um dia, logo, conseguir ser tudo menos invisível... aprender como nesse mundo de cão, ela poderia falar com os mortos.  

sexta-feira, 29 de julho de 2016

VIOLETA

De uma ária talhada pelos golpes de um cinzel obcecado, nasceu os lábios intermináveis de um vermelho pungente na beleza de um rosto machucado pelos excessos incontornáveis da vida. Violeta estava plantada numa cama, enquanto os pensamentos escorriam pelo paladar da sua memória. Ainda sentia o gosto de como tinha sido existir no amargo áspero de uma morte consequente, quase compensatória e bastarda! Morreria mais jovem do que parecia. As estradas dos vincos deixavam um sorriso amargo de doce inegável experiência. Na jardineira de sua cama hospitalar floria as últimas pétalas de seus turbulentos dias. Era uma mulher incomensurável. Sua coragem transbordava pelos cubículos atrofiados nas moléculas de ar. Coragem de viver as últimas consequências de seu idolatrado desejo. O ar da paixão nos tijolos soltos da carne. Compensado, comprimido, carregado pelos dias inacabados de orgias sem fim. Uma cortesã do fim dos tempos. Amava por prazer, deliberadamente, e exercia uma sedução atroz em si mesma diante dos intermináveis estímulos de uma voracidade infindável. Era uma estrela pendurada nos brilhantes noturnos do céu. Uma ninfomaníaca declarada. Não haveria uma noite que sua carne molhada não regurgitava os líquidos mais poéticos de uma anônima humanidade perdida na seda de seus vultuosos lençóis. 500 fios de navalhas... a barba áspera raspando os contornos de seus lábios. Grandes, inflamados, rubros de um  rubor inconfessável porém explicito, inegável... insaciável toque de sublime perfeição! Seus cabelos escorriam pelos quadros das memórias vivas nas paredes de dentro daqueles homens incontáveis. Uma colecionadora violenta. Dicotomia de sua lasciva destreza fatal e essa perturbadora  meiguice transbordando pelos poros. Decidiu acender um cigarro enquanto tragava seus nostálgicos pensamentos perfumados. Libidinosos versos escorrendo pelo molhado tecido do papel da parede dentro de um quarto. Um sopro de eternidade fugaz a cada ressureição do cosmos quando explodia. Sua respiração era uma catarse eólica na tempestade líquida dos efeitos absolutos da carne. Uma gota de orvalho surgia de seus pulmões, transpirava no vidro do banho... a lua chorava uma serenata entre a languidez de suas irretocáveis pernas e o grave no compasso ancestral em percussão na maestria de seus seios. Um suor viscoso gotejava dos pulsos seminais. Arrancados pelo salto alto em cima da fagulha de um isqueiro na chama escarlate do batom. Tinha uma orquídea violeta impressa em seus olhos de favos e fel. A fumaça do cigarro no réquiem do hospital. Ela jamais pensou que poderia ser tão irônico esse mecanismo bárbaro conhecido como viver. O pêndulo das transformações obsoletas, imutáveis. No meio das festas de seu pequeno covil com cheiro de ninho ela havia conhecido um homem. “Jamais serei mãe”, atestava ela, “não nasci para sentir o peso de um ventre vivo dentro de mim...”... e tragava as fumaças rarefeitas do erotismo subliminar escancarado em seus contornos reforçados pela própria aura vermelha de potestade incontrolavelmente livre. Escrava de uma gota só. Tácita escravidão da liberdade. E regozijava-se com os toques superficiais dos muitos rostos sem faces encarados no reflexo imperscrutável da escuridão. As notas eram enrolada para serem perdidas ao sopro da inalação. Bocas anestesiadas juntas debaixo do mesmo teto. As goteiras do infinito dentro de todos nós, elas vazavam para fora dos olhos dessa mulher. Hipnóticos, narcóticos, eróticos... espremida contra a própria parede de sua pele, não cabia mais dentro de si mesma quando estava impotente diante daquele forasteiro cavalar. Seu amor por esse homem era o caule ponte da corola de sua perdição. Era evidente. O gosto do homem absoluto vazando por sua boca. Costurando as entranhas de suas mais decentes perversões. O cheiro de um faro com sabor de deliciosa incontrolável submissão. Ele havia domado as vísceras rebeldes de uma mulher indomável. Ela sempre o tratou feito um cachorro. Um cão sem diabo. Um canil sem dono. Uivava lágrimas de desesperado cio a flor da pele. Violeta, roxa de tanto apanhar. Não existia nenhum outro como ele. Sequer teve opção de escolher. Ela era sua. Queria ser pisada pelo peso incontestável do gigante dentro daquele homem fincado no útero da terra. Suas raízes brotavam pelas pétalas desfolhadas de seu desejo. E com isso, crescia por ele um ódio nutrido de incontestável amor. Jamais poderia se subjugar dessa forma. Aquela criança nunca iria nascer. Violeta carregava um filho do forasteiro misterioso. E junto o medo de ser algo maior do que o objeto confortável e previsível de si mesma. O aborto nas membranas do sonho. O estrangeiro ao saber de sua  implacável decisão resolveu desaparecer para todo o resto do amanhã. Decisão terminativa e incontornável. Violeta desapareceria como um trago de seu último cigarro esbanjado a esmo no solitário leito de sua morte acidental. Complicações inimputáveis de um estúpido erro médico. O último trago, os seus beijos violados, seu caixão boiando numa piscina cheia de mortos. O mais engraçado, é que depois de tudo, eles conseguiram salvar a criança.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

MORGANA

Era uma fada de avental no uniforme costurado de um simples balcão. A magia tinha se consumido, porém sua ancestralidade cigana ainda brilhava na lente opaca de um óculos de lentes bifocais. Ela trabalhava numa loja de óculos, e vendia lentes no colorido da armação. Armaria num só golpe de um destino frustrado um novo começo de um fim repartido sempre nas 40 horas semanais. Estava tudo igual no cemitério ocular dos vivos míopes de fantasia. Morgana costumava ler as cartas de um tarô herdado da fada mãe, como as runas e a borra de café. Mas nos arredores dos dias últimos não lia sequer seu feitiço escorrendo pelo cilho deprimido. Lágrimas descartadas do baralho dos jogos de azar. Um lábio meigo porém vincado pela seca do verão passado enfeitava seu rosto como um pingente marinho adormecido no fundo do mar. Sempre um dia atrás da ultima estação, seus olhos não lembravam mais como poderia fazer para transformar a loja numa tenda de sonhos vivos. Tinha perdido sua mágica no meio do caminho, e por mais que tentasse reviver seu poder de visão a cada cliente perdido nos olhos vítreos do ocultismo comercial, tudo não passava de um amarelo sorriso mal feito atrás do silêncio falante do carnívoro balcão. As vezes chorava para dentro, quando estava quase para finalizar uma venda, temendo que uma lágrima inconveniente e indomável pudesse arruinar as tantas muitas migalhas do passivo de sua suada comissão. Era algo que não podia controlar, e como um vento passando pela tarde morna, simplesmente surgia sem aviso, essa lágrima broto nascente do canto deserto dos olhos ainda vivos. Um lago profundo por trás das lentes rasas. O olhar por trás da suspensão cristalina sobre hastes assassinas. A haste como apoio da distorção em olhos enxergando apenas o visível suportavam o cabresto de pálpebras escondendo um abismo por demais insondável. Era o seu próprio mistério no assassinato de sua imprevisibilidade. O mistério de não haver mais mistério... como ainda poderia expressar sua comiseração por uma maga presa no corpo solene de uma aprazível vendedora de óculos? Não enxergava seu próprio fim , enaltecendo sempre as horas do fim do expediente. Nem sequer mais o licor das pingas intempestivas tragava sem dó. A dó quando o não de sim mesma. O cigarro também não fazia mais parte de sua solene deterioração. Uma cigana deformada pela continuidade do tempo castrador. Vivia a deformação dos dedos enrugados no desgaste de um tédio senil. Era jovem porém envelhecida. Era meiga porém amargurada. Era livre no mundo, porém prisioneira do fado. Somente havia tempo para resguardar o próximo dia sem tempo numa rotina interminável. Queria ler as mãos delicadas de cada cliente de sua tenda nas entranhas de uma loja. Não podia, era contra o protocolo. Não podia tocar nas mãos de seda daquelas pessoas de tecidos mágicos e orgânicos. Os rostos coloridos das mil faces por trás de uma medíocre intenção consumista. Sonhos se evaporavam conjuntamente a cada gole do outro invencível em sua frente, impenetrável, intempestivo, impossível! Anacrônicos desencontros perfeitos. Cada segundo para além do presente descartado era um corte na retina de seu destino. Um premonitório sonho falante tinha lhe dito que sua mágica havia sido roubada por uma bruxa, e somente furando os olhos da falsa aparição ela poderia reaver seu livre encanto pela liberdade da vida. Não podia mais continuar. Teria que voltar a enxergar através da simplicidade do toque. Não poder tocar aquelas tantas mãos lhe cegava o tato da alma visionária. Ela lembrava que um dia tinha amado. Lembrava que tinha lido suas próprias mãos diante de um espelho mágico antes de entrar para a loja do horror. No dia dos vaticínios próprios ela foi avisada que não deveria entrar para um labirinto sem saída. Todos os labirintos poderiam ser vencidos desde que haja uma saída. Naquele não havia. Não havia portas, sequer paredes, muros, curvas, arcabouços, tetos, janelas, buracos, vielas, contravenções... Nada, não havia nada em torno dessa elipse existencial. Eclipse dos sanatórios comuns disfarçados de simples cafezinhos no fim apocalíptico da tarde eterna. Apenas uma loja vazia cheia de óculos caros e bem acabados. Não podia mais ver o final da história sem enxergar os outros morando sobre cutâneos da pele ardida do seu desejo ressentido. Os milagres do subterrâneo. Foi nesse último dia de verão que Morgana transcendeu o narcótico efeito da onírica paralisia. Um instante antes de finalizar a venda, ela tremeu.  A haste na metamorfose da faca. O sonho e sua terrível libertária voz. Era uma semente do pesadelo de não viver outra vez. A última cliente. Não havia como voltar mais atrás. Seria um novo começo numa outra possível libertadora prisão. Um grito, e uma socialite cegada pela fatal e intuída explosão. Morgana sem reprimir-se, enfiou cegamente aquela haste YSL nas profundezas das carnes do olho de uma cliente misteriosa, enfeitada por joias e plumas de faisão, que nas colunas sociais, era vulgarmente conhecida como “ a feiticeira”.... um grito de liberdade, óculos novos nos sonhos mórbidos apodrecidos atrás das grades, e uma algema no pulso livre para quebrar a rotina, destruir uma determinada visão e terminar um pouco menos sem graça com a desgraça do fim do expediente...