Apenas uma lembrança velada pelo tecido de seus olhos, ela nao existia mais. Era a
imagem do que teria sido sendo o amor de um louco. Dulce nada sabia sobre sua inexistência. Pulsava nas vísceras de seus pensamentos entorpecidos. O vinho molhava a cor de seus labios aguados. Era uma alucinação de mulher. Ele queria que ela fosse real. Talvez fosse, somente para ele. Ninguém nunca a enxergou. Era como o ar atravessando as veias do tempo. O vento escorrendo pela face. Pelas paredes sendo desmanchadas pela dor da erosão. Um dia foi se maquear. Era jovem outra vez. A pele enrrugada era novamente uma tez de veludo rosa. Uma mulher delírio enxergando seu reflexo nos olhos do espelho de seu amor. Enxergando seus olhos num sonho! Ali, na dor perene da madrugada fria, dentro de um lugar escondido num abismo, Dulcineia existiu por uma ultima vez. O homem morreu de tempo, e com ele todas as suas intraduzidas humanas memórias. Medievais. Assim desapareceu Dulce para sempre, o casto amor de um verdadeiro Don. Um perfil deletado de uma esquizofrenica página virtual.
Para celebrar o último mês de tratamento hepático, me proponho a escrever um conto por dia, por 28 dias, contando a partir de hoje, com o tema "MULHERES DESENCANTADAS", que reunirá heroínas do nosso imaginário literário universal na pele de nossas mulheres contemporâneas, comuns, e extra..ordinárias!! Uma singela homenagem para essas mulheres essenciais nessa exaustiva luta que travamos diariamente para não devorarmos o próprio fígado!
sábado, 6 de agosto de 2016
sexta-feira, 5 de agosto de 2016
BEATRIZ
A cor tinta de uma primavera de sonhos explodia nos nervos
plácidos da folhagem do ipê. Era o pé de sua primavera sagrada, onde além de
sonhos, plantava um sentimento para ser germinado nas raias inavegáveis do
ainda amanhã. Uma quimera olímpica. Ela era apenas uma sublime e fantástica
inspiração, e nada mais. Teria trocado sua fama póstuma na imortalidade
daquelas letras mágicas por uma vida inteira agarrada no presente de seu amor. Mesmo que o inteiro fosse só uma metade. Beatriz conduziu seu amado ao paraíso, mas morreu terrivelmente só. Ele era um
poeta da vanguarda submissa, nunca observado pelo nada além dos olhos de um mundo
de ninguém, até que seus olhos o conduziram a uma fascinante e premiada combustão literária. Ela era uma mulher da luz interminável, e brilhava não só apenas por corresponder a um sentimento
maior que o mundo, mas por abraçar o mundo com seu interminável sentimento. Ele
não soube o que fazer com ela depois disso, nada além
da solidão dos teclados mortos na violência das palavras vivas. Ela permaneceu
esperando seu amor despertar e tomar a forma tenaz de um incólume guerreiro no
parto do amanhecer. Esperou em vão. Ele se afundou sozinho na fama da poeira dos
livros. Ela morreu entre a poeira da solidão e o paraíso do seu sonho. Um
limbo de retaguardas inalcançáveis. Deixaram toda a esperança do lado de lá! Chorava
letras e versos decorados quando envelhecida lia a obra mágica cujos lábios na
ponta de seios imaculados num dia passado de verão, serviram não só ao tato do poeta assassinado, mas às
filigranas da alma profunda da sua mortífera inspiração. E morria presa na
contra capa do livro. Imortalizava-se a cada ausência de si mesmo nos outros infinitos desconhecidos. Vivia assim o resto dos seus dias pálida na frieza desprezível da arte enquanto ao mesmo tempo morria no calor divino da humana indiferença da trágica comédia da vida.
quinta-feira, 4 de agosto de 2016
MARGUERITE
Uma princesinha resplandecente e bem
educada. Havia nascido para ser a menina joia da família preciosa. Em sua débil
constituição social, aos poucos, depois de alguns anos desse insistente cárcere
moral, Marguerite havia se transformado na prostituta mais famosa da cidade.
Sua família não entendia o que havia acontecido de errado. Cada um dos mil
semblantes que haviam lhe visitado cuspiam um trocado promíscuo de algumas
moedinhas no baú de seu interior húmido e fértil. Era uma putinha refinada
porém barata. Fazia questão de não cobrar muito para não descriminar as diversas
classes de sua deliciosa perdição. Ao mesmo tempo, não recusava pequenos incentivos
vindos como vultuosas nunca desinteressadas doações. Depois de
algum tempo, havia acumulado uma pequena fama e fortuna. Poderia partir com o
sorriso estampado no clitóris. Sua mãe descabelava-se sempre ao visitar as
páginas da internet para espiar seus
provocantes delitos. Fingia que nada
sabia. Era uma mulher religiosa e assexuada. Essas que apagam o fogo das entranhas
com a delicada imagem da santa. Ironia amarga da vida. Mal sabia ela que o fetiche
de Marguerite era penetrar-se com a virgem casta do seu altar. Sim, ela
masturbava-se com a virgem Maria, ao mesmo tempo que era penetrada por uma fila
de homens da degenerada cena burguesa do covil metropolitano social. Não haviam
sobrado muitos. A família nunca sagrada jamais poderia compreender. Um anseio
de liberdade oposto aos triviais e deformados valores de uma personagem
emoldurada na frieza hipócrita das volúveis convenções dos talheres de três
dentes e engomados colarinhos de vidro. Ela debatia-se feito uma cadela no cio
ao mesmo tempo que alimentava a sádica ilusão de menina frágil. Era mais fácil
para seus algozes enxergarem Marguerite como uma pobre coitada. E ela vestia a
carapuça direitinho, amordaçada em sua bela cama das camélias... das
margaridas, das violetas, das rosas defloradas... os copos transbordando de leite! E ria.... ria em orgasmos
múltiplos e sucessivos. Ali todas as flores eram germinadas em sua delinquente e juvenil corola sexual. Quanto mais impingiam um controle, mais ela degenerava-se. O
melhor era saber que existia um lugar que eles jamais iriam tocar. O seu
mundo interior, onde a pequena Marguerite deleitava-se com suas perversões
infindáveis. Um sorriso que eles nunca conseguiriam castrar. Um sorriso que
eles nunca conseguiram compreender! Com o tempo esse ciclo vicioso de ácidos desejos escancarados era tudo que havia sobrado no cotidiano da rotina esvaziada. A puta
virgem da família de um pobre mundo casto estava sufocada pelo tédio. Nada
mais. Marguerite ainda ria, pois conseguia raspar do útero cinza autênticas gotas de
felicidade colorida. Por dentro gozava
enquanto se fingia de morta. Estava acostumada a agir assim. Afinal, havia sido
educada pelo sadismo velado da chama de uma vela de sete dias. Grossa e
redonda. A medida certa para estimular sua prece genital. Sabia que o mundo era
podre por dentro, mas tinha um sabor irreversível de fruta vermelha do pecado.
Um belo dia, Marguerite partiu. Tinha cansado de ser uma puta rica e ociosa,
vestindo o mal hábito de uma freira amarela e comportada. Ela havia decidido
recomeçar. Iria sublimar essa chama ilibada do maçarico ereto das santas
torturas religiosas e transformar sua perdição em um novo destino. Almas livres rodopiando nas fogueiras eternas
das mentirosas saudades. A carne finalmente havia se tornando imunda, porém o espírito
ficou mais leve. Prostituição no ofício
do prazer. Dona de sua própria vagina, Marguerite no clamor de uma vida sempre
surpreendente, no outro lado do mundo, apaixonou-se por um estudante de
direito. Amarga ironia. Morreu vítima de Aids. Uns dizem que foi a conjuntura dos fatos que a debilitou. Ela foi
humilhada pelo pai do rapaz. Seu futuro sogro tinha sido um dos muitos
frequentadores de seu inflamado apartamento. Quem diria!... do outro lado do
mundo encontrou o amor na prole de um antigo cliente. A pretensiosa regenerada e a
verdade atirada na cara do próprio filho. O pai jamais pôde admitir tal
união. Era um dia cinza e chuvoso quando a vela se apagou. Diante de sua
penumbra num quarto no terceiro andar, a imagem perdida da santa. Antes de
morrer, Marguerite no seu mais profundo ser, deu um leve sorriso repuxado,
lembrou-se de quando era menina, e com a textura viril das juntas de seus dedos
longos, acariciou-se até o último suspiro enquanto falava com a mãe no
telefone... “mãezinha, saudades de você... não se preocupe, está tudo bem
comigo, fique em paz...Adeus!” Um dia ainda seria canonizada... mas muito, muito tempo depois de deixar essa incompreensível lembrança imaculada e pura, radiografada na indelével mancha para sempre livre na branquidão imensa do lençol.
quarta-feira, 3 de agosto de 2016
ODETTE
Um
lago de lágrimas no cristalino virgem de seus olhos. Uma menina do interior
encantada pela lábia peçonhenta de um velho ardiloso dono de uma agência de
modelos. O velho truque do velho vigário dono de mortes lentas no descompasso
de um mundo sem inocência Ele prometeu que ela ganharia o mundo. Os cisnes
mortos em seus congeladores de sonhos. Na geladeira de um lábio enterrado em
carnes de funeral o velho prometia para suas meninas aquilo que sua pele
desdenhosa e flácida sem o ardil jamais conseguiria obter. Odette
deslumbrava-se com os píncaros falaciosos de um mundo estampado na fuligem dos
jornais. Efêmero. Fugaz. O tempo passava sempre dentro de sua cabecinha
sonhadora. Ela deixou a família para trás, os ossos enterrados na cor do estio
eterno da roça. Deixou aquele pobre menino pobre demais para ser para sempre
seu único amor. Ele teria para sempre sido. Mas Odette foi a isca do pesadelo
de seu próprio sonho. Penteava-se com uma escova de cabelos arrancados do seu
futuro. Quando percebeu era tarde demais. Estava já aliciada. O velho a trancou
nesse mundo irreversível e enfiou a chave no rabo. A grande passarela da moda
se resumia nas manchas de ferrugem espalhadas pelo lençol mais barato que uma
vagabunda só conseguiria sozinha respirar para poder passar. Uma fachada de cobras
comedoras de ratinhas brancas cujo corpo afogado num lago de esperma
dentro de um travesseiro de falsas plumas coloria a tinta desgarrada do trauma
e sua respectiva dor. A agência era uma deteriorada casa de prostituição. Os
clientes apareciam geralmente bêbados. Velhos, gordos e nojentos. Despejavam
suas doenças imundas nas peles amolecidas das tantas meninas mortas pelo sonho.
“você vai ser famosa... vamos publicar seu rosto na capa da revista...” e a
história se repetia. Odette tinha vergonha de ligar para sua família. Não
conseguia ouvir a voz de sua mãe e dizer... “sim mamãe, está tudo bem comigo...”
A cidade lhe engolia. O cheiro de mofo daquele cortiço na espelunca de um pardieiro
de monstros. Era dia das bruxas quando o velho lhe avisou que teria que usar uma
fantasia. Eles estavam decorando o lugarzinho para uma pequena festa íntima.
Clientes na borra da nata da sociedade da fé com um azedado fétido leite... A fantasia incluía
umas asinhas brancas e uma venda negra. Assim ela estaria bela outra vez.
Rejuvenescida pelo lindo sonho pueril. “que coisinha mais linda...” o velho
lambia sua boca cheia de baba cega e viscosa. Cabra morta no sacrifício de um
jagunço comedor de fígados dourados. Ela estava com a venda nos olhos. Semi
amarrada, disposta em cima de uma mesa central, baratinha, com algumas das
outras meninas pobres, como se fosse uma fruteira no horror interminável de uma
agonizante cornucópia. Viva a passarela fúnebre de um jato de esperma envaidecido! Sêmen
perturbada. Os gozos escorrendo de suas entranhas adoentadas, exploradas. A
gruta do inferno na caverna vaginal do paraíso.
As meninas entorpecidas. Cheiravam a brancura louca da coca. O velho
contava as notas na mentira de suas mãos. “seu rosto vai sair em todas as
revistas... nós vamos transformar você numa estrela”... e ria se masturbando
escovando os dentes amarelos com os caninos priápicos do próprio gozo. E a
festa aumentava seu frenético espermicida vulgar de um prosecco barato. As bolhas voavam no bolor do metro quadrado
da perfídia de um prostíbulo manipulador de vaidades desavisadas. Ele ria e ela
chorava. Os tantos nojos lhe penetrando em cima da mesa de plástico. No cúmulo
da desproteção. As meninas agarradas nas penas da fantasia. O globo cafona girava suas
luzinhas de inferno. Era de dar pena. E o velho contava as notas. E Odette contava as lágrimas. Desesperada. Os sonhos uma vez sonhados e nunca realizados...deteriorados! Iria ser uma virgem puta e sonhadora pela última vez. Quando o velho foi
desafogar seus flácidos alívios em seu humilhado interior, a venda se rompeu.
Odette o encarou nos olhos. Viu que era ele o demônio da vez. Por um instante o velho corou. Ele sabia que ela
sabia. Por um segundo, ela viu a face de seu modesto amor recrudescer na cor
perdida da roça. Não hesitou. Cravou os dentes na pele e arrancou o pênis
daquele homem com a boca. A festa acabou. Não me lembro o que aconteceu. Mas
acho que um dos clientes acabou chamando a polícia.
terça-feira, 2 de agosto de 2016
JOCASTA
Castos
os filhos de uma sociedade escrava pelos grilhões de uma pérola negra social.
Eles eram castos e brincavam de escravos de Jó. O filho legítimo teria de ser
sacrificado aos pés do morro. Mortos os irmãos fantasmas. Ela era exuberante e
rica. O menino foi roubado na maternidade. Muitos anos se passaram. Jocasta
tinha ido a uma noite de ópera com o estrondoso marido. Uma parcimônia
industrial de um super valorizado mercado de ações. Magnata de uma vida de cristal
de boemias no papel de um romântico trovador. A tragédia da noite extravasaria
as bruxarias de uma vingança paga em nome da mãe. Mulheres pagãs do desespero da fome,
aglutinadas nas sarjetas das cidades, dançando com o ventre os alimentos escassos de um ritual
onde morcegos e ratos enfestariam o bojo do caldeirão. Suas pérolas brilhavam
mais do que seu pescoço. Por uma fatalidade a escuridão insidiosas não revelou
os olhos daquele pequeno diabo escondido atrás do poste. Atraído pelo brilho
das pedras como a barbatana assassina dos mares vidrava-se com uma gota de
sangue dispersa na imensidão das probabilidades certeiras do oceano. Uma coincidência quanto
mais impossível se tornava ao mesmo tempo que fatal a mais provável de
acontecer. Entre todas as simultaneidades da vida, esse encontro seria o
ultimato do próprio ser no topo dentro da cadeia alimentar de prisões
invisíveis e carcerárias. As pérolas negras na luz da noite sobre a cheia
transbordante de lá Luna. Voraz e intimidadora. Mágica persistente no clamor
diabólico do fado. Seu marido, o magnata, apertava sua mão. Ele pressentia o
bafo negro dos becos. Não era o local mais apropriado para caminhar depois do enterro do sol. Não era
o melhor lugar para terem fincado um teatro. No centro municipal da fome. Eles
seriam esquartejados pelo destino. Presas fáceis fora da bolha a prova de balas
de uma viatura blindada a prova de sonhos. Caminhava um pouco exaltado pela calçada, com pressa
de atingir o estacionamento. Aqueles dedos tortos segurando a mordaça do
gatilho atrás do poste. Silêncio. Tremia. “passa a carteira...anda...vai..
vai...” e um susto corou a pele magra do homem poderoso. Impotente. Pálido. Os
olhos estrelados do bandido. Eles pularam para fora do corpo. Vomitaram as órbitas
na cara. Para fora da própria alma. “o colar... eu quero o colar...”e a tensão
esticava os cabos nos aços dos nervos do cão. Um estalo. Ele viu o homem
colocando a mão no bolso. O tiro rompeu os tímpanos da madrugada. Jocasta
berrou. Histérica para seu próprio infortúnio. Os olhos estalados da lua em sua
cara. As pedras espalhadas pela calçada. Violência e estupro. Era a única forma
de calar a boca daquela mulher. Uma vaca fora do pasto coberta por joias. Violando-a.
Ao menos, era esse o jeito que a vida havia lhe ensinado. O casaco de pele
morta ganhou vida. Sangue e uma calcinha arrancada pelos dentes de um pobre animal
acuado. Assassino! Para seu desespero, ela viu a cor estatelada de seus olhos azuis. Os olhos
do pai. A atávica medalhinha desaparecida em seu pescoço. Lembrou da noite de terror na maternidade. Os destinos trocados. Quando com suas próprias decepadas mãos colocava a medalhinha
no pescoço enforcado de seu filho. Enforcada pelo agora. Os dedos tortos. Sobre
o gatilho emperrado, soprando a pólvora de seu marido morto, ela estremecia. O
sêmen de seu filho flutuando dentro da barriga. Não tinha mais dúvidas. O mesmo
dedo do pai. A medalhinha desaparecida na noite trevosa do hospital. Jogada na
sarjeta. Não restaria mais nada a fazer. O colar se partiu com o crime. Na
esquina de uma noite do destino, aos prantos, ela lembrou o quanto esses anos
todos, seu marido havia se utilizado de um mercado negro para existir... o
quanto que sem nunca se importar, os dois foram coniventes com uma declarada
exploração infantil.
segunda-feira, 1 de agosto de 2016
PENELOPE
A
voz no silêncio enterrado sob o vazio de uma caixa na montanha. Todos os
domingos pareciam iguais, mesmo que ela não fosse até o cemitério, o cemitério
iria até ela. Enterrado dentro de seu peito os ossos de uma lembrança do que um
dia teria sido o retrato do amor. Penélope aguardava sem saber do seu aguardo o
retorno eterno do marido morto na guerra. Ela era da esperança a viúva. Ele, um correspondente de sentimentos escassos no agora desmanchado
sobre a pele terrorista dos ventos. Desapareceu como um rastro de sombra no
filete amargo da luz. Não tinha notícias. Sequer uma carta. Nada. Suas pegadas
haviam deixado marcas apenas na areia de seus pensamentos. A caixa era simbólica.
Teria sido encomendada para ali se poder chorar. Um túmulo vazio cheio de
vastas emoções. Cheio de vida. Ali ela havia depositado suas irrecuperáveis
horas sentidas. Preencheu a ausência do corpo do marido com sua fidelidade
quase doentia. Quase muda. Quase viva. As lágrimas eram as gotas de tempo
escorrendo do relógio envelhecido na espera de um tecido preso na pele viva da cabeceira de sua cama .
O tapete mágico de seu verdadeiro e único amor. Nessa tarde de domingo sóbrio o
sol escaldava um sorriso lacrimejado. Imune
aos olhos de um novo pingo, não tinha mais dor para chorar. Começou a chover. Apenas
um vazio deixado pelo rastro da época invencível, incontornável. Todos os mesmos
domingos o astro se punha mais devagar, mais nefasto... A tortura flamejante no
céu ... arrastando para debaixo da terra a recordação de um dia de felicidade
sobre o altar caloroso da voz... do sim!!! Ela fiava, tecia, cosia sua expiação no mutismo da memória surda aos apelos
veementes dos mais diversos pretendentes seculares. A esperança dentro da caixa
vazia afogava sobre as águas esse luto insuperável. Submersa dentro da terra,
Penélope confundia os outros rostos com o mesmo desaparecido olhar infinito,
carregado sobre a densidade da alma de tudo. No fim de tarde um corvo e uma
andorinha se entrelaçavam na circular dança da vida. Eles eram talvez os espíritos da solidão dispersos em seu peito cuja
pele camuflada pelo tecido pulsante do jardim arrepiava os pelos das gramas e
dos abetos inconscientes da vida viva em cima da terra.... O canto facínora da paz e
sua verdadeira videira dos sonhos. No final, todas as pessoas se transformavam
em árvores. As árvores grávidas de flores. Os sorrisos em grávidos passados. A gravidade da vida... da morte! Na
montanha e sua caixa Penélope habitava uma floresta sagrada. Todos os homens
mortos na guerra dentro de nós. Eles floriam na pureza da cor. Um vento
acariciou sua face. A silhueta de um homem só. E uma caixa... cheia de cinzas
cor de sangue. O retorno amargo do fantasma de um rei insepulto. Penélope
chorou depois de 20 anos. Finalmente seu filho voltou do nada carregando a urna
silenciosa do último abraço do seu eterno pai.
domingo, 31 de julho de 2016
HELENA
Uma beleza atroz de cortar os pulsos. Homem no mundo suportava sustentar uma vida ao seu
lado. Deveria ficar confinada dentro daquelas quatro paredes. Apodrecendo.
Vivia no
interior de muralhas cuja queda prescindiria por pouco seu tão esperado
envelhecimento. Feia e velha poderia voltar ao mundo. Não incomodaria mais ninguém. Ela pagou o preço
por ter um interior correspondente a sua pele. Era boa e interminavelmente
bela. Nada recatada para sua desgraça. Talvez não fosse tão espontaneamente justa. Não sempre. Mas afinal, era apenas uma mulher num
mundo onde até os deuses são desumanos. Helena vincava a dor de ser tão ou mais
solitária em apenas um reflexo do seu triste espelho perdido na cabeceira. As
belezas deveriam ser mudas. Essas tinham o direito de viver a vida das homenageadas
do lar. A terra dos mancos de face. Uma feiura podre reinava numa misericórdia
fingida da sociedade da compaixão mesquinha. Egoísta. Falsa. Desesperados para
gozarem com o próprio falo, condenavam qualquer lábio que se desse o direito de
possuir os homens pela cabeça e ao mesmo tempo pelo coração. Essas seriam as
bruxas nas fogueiras santas...digitais impressas na armadilha manjada da rede
de um simbólico marido horroroso e aleijado. Helena ardia em labaredas de
mortos enfileirados no seu jardim. Todos sorrindo do outro lado da margem com
binóculos fálicos e espúrios. As lentes dos famigerados insatisfeitos. Esqueletos
vivos, com as peles descascadas. O povo das deformações. Como era horrível ser
bela num mundo de horrores. Como era violento enraivecer os vermes por
características imutáveis, que nada na vida conseguiria negar. Se ao menos
fosse uma porta, poderia abrir-se para fora da muralha. Mas a translúcida luz
perpassava todos olhos na pele de sua escancarada janela como um raio no céu
meteórico do reino absoluto do sol. Solo para morrer em retaguarda na
trincheira vazia. Sem guerra...sem paz! Helena na lenda do dia sem fim. Solo despovoado e raízes fecundas. Fenomenais.
Feéricas.... Era esse seu solilóquio estelar. As estrelas condenadas a nascerem
e morrerem só. Na distância de uma poeira alheia, intergaláctica, espacial, Helena
brilhava fria dentro das muralhas de sua prisão. Morta por antecipação da vida
radiosa. Ela rasgava os versos do sorriso delineado na dor vermelha do batom.
Era sua própria escultura e aprendia a satisfazer-se com o desprezo que tanto
lhe ensinaram. Desprezava a possibilidade de saída. O labirinto se fechava em
torno de seus músculos bem formados. Seios lácteos na via do universo perfeito.
Ela deveria morrer envenenada de si mesma. Esse foi o veredicto dos deformados
sorridentes. Assassinos socráticos do mais belo dos filósofos. Impecáveis. Se ao
menos soubesse, teria uma vez no passado se fingido de muda. Uma cadela
morta... bem adestrada, essas que batem palma no comício do circo Vostok! Mas
agora era tarde demais. A inconfundível voz da sua beleza já havia singrado os
quatro cantos do mundo. Beleza mortal. Depressa deveria morrer. Podre e
sozinha. Era um sádico jogo de percepções mútuas e tácitas. Onde o fora fingia
não olhar para dentro e vice versa. Os
tijolos de vidro de sua muralha mágica. E o dentro sorria. E o fora sorria de
volta. Cada um no limite árduo de seu próprio flagelo. Os frutos apodreceriam
antes das flores. As flores nasceriam mortas. O mundo não os conheceria.. seus belos filhos...! Helena
somente enlouquecia na sobriedade de uma resistência insípida. Lentamente, como
eles haviam planejado, sem sequer notar! Nenhuma guerra seria travada por sua
alma. Nenhum herói iria morrer por ela. Sequer um único cavaleiro fantasma... os
simulacros de iscas eram apenas provocações para apressar ainda mais sua partida onde tão
esperado alívio seria brindado com um suspiro comum. Até que no meio dia crepuscular,
o esperado aconteceu. Ela achou que ele tinha aparecido. Narciso hercúleo e o resgate
fatal. Por engano, fazia amor com o espelho da cabeceira. Que cavalo!!! Mal criado...Mudo.
Gritava.... com a explosão de sua contida ferocidade orgástica ele partiu no
meio. O sangue de seu pulso aberto pelo vidro escorria serenamente pelos
degraus inalcançáveis da muralha estendida sobre o tapete mórbido no zoológico na escada....e da poça vermelha de sangue diz a lenda que brotou um cavalo mágico com asas...
sábado, 30 de julho de 2016
AASE
Um eucalipto rasgava os tormentos do barraco
de papelão. Papeis mortos na sarjeta de uma deploração ocidentável. Acidentes
conglomerados nos paralelepípedos um dia antes da fome ser satisfeita nos paralelos
de um meridiano sem mundo. Ela havia dedicado a vida para o menino. O morro e
Pedro. Seu filho agora tinha se perdido em suas vielas... à Aase não restava
nada mais além dos recortes de uma solidão impressa no lixo voador. Circo de um
país dançante. Arena de bastidores ignorantes e larápios comedores de sucata
humana. Eles venceriam as próximas eleições… os pesadelos disformes do medo
daquela mulher. Uma mãe deplorável. Ainda teve que escutar algo como “a culpa
foi sua… quem mandou me colocar no mundo”… filhos mendicantes ou chefes do
tráfico?... de pessoas, de almas descartáveis, de vícios mesquinhos, de
prazeres moribundos, os olhos mortos repetindo-se ad eterno na página do jornal…
uma fogueira de papel para esquentar as suas duras mãos. Era o frio rasgando as
paredes de jornal do amotinado de recicláveis abrigos favelados. Eles comiam
lixo para poderem voar. Os urubus da sarjeta… eles tinham um coração de homem, e
uma dor sensível de abandonada criança. Asas negras da escuridão da noite
vazia. O eucalipto surgia do meio da sala. Se é que aquela latrina pudesse usufruir
de alguma classificação imobiliária. Seus olhos esparramados com o fogo
chamuscado dessa noite de frio. Aase chorava seu filho desregrado. Ele havia se
perdido no morro. Condenado ao exílio,
resolveu armar-se para destruir suas presas do passado. Selvas depredadas no meio da pedra no caminho. Tinha uma pedra no meio do cachimbo... no meio do cachimbo tinha uma...Selva! Todos esses silêncios não
passavam mais. Não falavam mais. Não choravam mais. Um arame farpado enroscado
na dor do muro. Um pneu de bicicleta agarrado no carrinho de milho. Um tênis
podre desmanchando-se na fiação elétrica. Eram pedaços humanos apodrecendo no
mundo. Ninguém estaria lá. Nem mesmo seu filho. Nem mesmo Deus. Os ratos
sorriam nas cartas marcadas do baralho. Os ases do morro só. Pele de um
sofrimento atroz. Por que nasceram assim? Esses detritos da humanidade. Ela olhava
para o reboco de uma lágrima e escorregava as mãos pela flanela de seu
vestidinho. Tremia sem sequer perceber. Os trapalhões sorrindo na parede. Uma estação perene de inverno sem luz. A
garrafa de coca cola esmagando a aridez do asfalto. Ela sobrevivia no deserto
da cidade. Morta. Parada. Encostada no eucalipto de seu barraco. Como era linda
a potência viva da árvore. Por um instante tudo parecia viver sem dor. Quando
aquelas folhas atingiam o céu. Arranhavam o azul do lar eterno. Por um instante
tudo parecia natural. As costelas de um cachorro na pele dos homens. Magros e
infelizes. Ele não iria voltar mais. Morreu com um chumbo na cicatriz pulsante
do coração. A mãe dormia no frio, e na esperança de um dia, logo, conseguir ser
tudo menos invisível... aprender como nesse mundo de cão, ela poderia falar com
os mortos.
sexta-feira, 29 de julho de 2016
VIOLETA
De
uma ária talhada pelos golpes de um cinzel obcecado, nasceu os lábios
intermináveis de um vermelho pungente na beleza de um rosto machucado pelos
excessos incontornáveis da vida. Violeta estava plantada numa cama, enquanto os
pensamentos escorriam pelo paladar da sua memória. Ainda sentia o gosto de como
tinha sido existir no amargo áspero de uma morte consequente, quase
compensatória e bastarda! Morreria mais jovem do que parecia. As estradas dos
vincos deixavam um sorriso amargo de doce inegável experiência. Na jardineira
de sua cama hospitalar floria as últimas pétalas de seus turbulentos dias. Era
uma mulher incomensurável. Sua coragem transbordava pelos cubículos atrofiados
nas moléculas de ar. Coragem de viver as últimas consequências de seu idolatrado
desejo. O ar da paixão nos tijolos soltos da carne. Compensado, comprimido,
carregado pelos dias inacabados de orgias sem fim. Uma cortesã do fim dos
tempos. Amava por prazer, deliberadamente, e exercia uma sedução atroz em si
mesma diante dos intermináveis estímulos de uma voracidade infindável. Era uma
estrela pendurada nos brilhantes noturnos do céu. Uma ninfomaníaca declarada.
Não haveria uma noite que sua carne molhada não regurgitava os líquidos mais
poéticos de uma anônima humanidade perdida na seda de seus vultuosos lençóis.
500 fios de navalhas... a barba áspera raspando os contornos de seus lábios.
Grandes, inflamados, rubros de um rubor
inconfessável porém explicito, inegável... insaciável toque de sublime
perfeição! Seus cabelos escorriam pelos quadros das memórias vivas nas paredes
de dentro daqueles homens incontáveis. Uma colecionadora violenta. Dicotomia de
sua lasciva destreza fatal e essa perturbadora
meiguice transbordando pelos poros. Decidiu acender um cigarro enquanto
tragava seus nostálgicos pensamentos perfumados. Libidinosos versos escorrendo
pelo molhado tecido do papel da parede dentro de um quarto. Um sopro de eternidade fugaz a cada
ressureição do cosmos quando explodia. Sua respiração era uma catarse eólica na
tempestade líquida dos efeitos absolutos da carne. Uma gota de orvalho surgia
de seus pulmões, transpirava no vidro do banho... a lua chorava uma serenata
entre a languidez de suas irretocáveis pernas e o grave no compasso ancestral em
percussão na maestria de seus seios. Um suor viscoso gotejava dos pulsos seminais.
Arrancados pelo salto alto em cima da fagulha de um isqueiro na chama escarlate
do batom. Tinha uma orquídea violeta impressa em seus olhos de favos e fel. A
fumaça do cigarro no réquiem do hospital. Ela jamais pensou que poderia ser tão
irônico esse mecanismo bárbaro conhecido como viver. O pêndulo das
transformações obsoletas, imutáveis. No meio das festas de seu pequeno covil
com cheiro de ninho ela havia conhecido um homem. “Jamais serei mãe”, atestava ela, “não nasci para sentir o peso de um ventre vivo dentro de mim...”...
e tragava as fumaças rarefeitas do erotismo subliminar escancarado em seus
contornos reforçados pela própria aura vermelha de potestade incontrolavelmente
livre. Escrava de uma gota só. Tácita escravidão da liberdade. E regozijava-se com os toques
superficiais dos muitos rostos sem faces encarados no reflexo imperscrutável da
escuridão. As notas eram enrolada para serem perdidas ao sopro da inalação.
Bocas anestesiadas juntas debaixo do mesmo teto. As goteiras do infinito dentro
de todos nós, elas vazavam para fora dos olhos dessa mulher. Hipnóticos,
narcóticos, eróticos... espremida contra a própria parede de sua pele, não
cabia mais dentro de si mesma quando estava impotente diante daquele forasteiro
cavalar. Seu amor por esse homem era o caule ponte da corola de sua perdição.
Era evidente. O gosto do homem absoluto vazando por sua boca. Costurando as
entranhas de suas mais decentes perversões. O cheiro de um faro com sabor de
deliciosa incontrolável submissão. Ele havia domado as vísceras rebeldes de uma mulher indomável. Ela sempre o tratou feito um cachorro. Um cão sem diabo. Um
canil sem dono. Uivava lágrimas de desesperado cio a flor da pele. Violeta,
roxa de tanto apanhar. Não existia nenhum outro como ele. Sequer teve opção de
escolher. Ela era sua. Queria ser pisada pelo peso incontestável do gigante
dentro daquele homem fincado no útero da terra. Suas raízes brotavam pelas
pétalas desfolhadas de seu desejo. E com isso, crescia por ele um ódio nutrido
de incontestável amor. Jamais poderia se subjugar dessa forma. Aquela criança
nunca iria nascer. Violeta carregava um filho do forasteiro misterioso. E junto
o medo de ser algo maior do que o objeto confortável e previsível de si mesma.
O aborto nas membranas do sonho. O estrangeiro ao saber de sua implacável decisão resolveu desaparecer para
todo o resto do amanhã. Decisão terminativa e incontornável. Violeta desapareceria
como um trago de seu último cigarro esbanjado a esmo no solitário leito de sua morte acidental. Complicações inimputáveis de um estúpido erro médico. O último
trago, os seus beijos violados, seu caixão boiando numa piscina cheia de
mortos. O mais engraçado, é que depois de tudo, eles conseguiram salvar a criança.
quinta-feira, 28 de julho de 2016
MORGANA
Era
uma fada de avental no uniforme costurado de um simples balcão. A magia tinha
se consumido, porém sua ancestralidade cigana ainda brilhava na lente opaca de
um óculos de lentes bifocais. Ela trabalhava numa loja de óculos, e vendia
lentes no colorido da armação. Armaria num só golpe de um destino frustrado um
novo começo de um fim repartido sempre nas 40 horas semanais. Estava tudo
igual no cemitério ocular dos vivos míopes de fantasia. Morgana costumava ler
as cartas de um tarô herdado da fada mãe, como as runas e a borra de café. Mas
nos arredores dos dias últimos não lia sequer seu feitiço escorrendo pelo cilho
deprimido. Lágrimas descartadas do baralho dos jogos de azar. Um lábio meigo
porém vincado pela seca do verão passado enfeitava seu rosto como um pingente
marinho adormecido no fundo do mar. Sempre um dia atrás da ultima estação, seus
olhos não lembravam mais como poderia fazer para transformar a loja numa tenda
de sonhos vivos. Tinha perdido sua mágica no meio do caminho, e por mais que tentasse
reviver seu poder de visão a cada cliente perdido nos olhos vítreos do
ocultismo comercial, tudo não passava de um amarelo sorriso mal feito atrás do
silêncio falante do carnívoro balcão. As vezes chorava para dentro, quando
estava quase para finalizar uma venda, temendo que uma lágrima inconveniente e
indomável pudesse arruinar as tantas muitas migalhas do passivo de sua suada
comissão. Era algo que não podia controlar, e como um vento passando pela tarde
morna, simplesmente surgia sem aviso, essa lágrima broto nascente do canto
deserto dos olhos ainda vivos. Um lago profundo por trás das lentes rasas. O
olhar por trás da suspensão cristalina sobre hastes assassinas. A haste como apoio da distorção em olhos enxergando apenas o visível suportavam o cabresto de pálpebras
escondendo um abismo por demais insondável. Era o seu próprio mistério no
assassinato de sua imprevisibilidade. O mistério de não haver mais mistério...
como ainda poderia expressar sua comiseração por uma maga presa no corpo solene
de uma aprazível vendedora de óculos? Não enxergava seu próprio fim ,
enaltecendo sempre as horas do fim do expediente. Nem sequer mais o licor das
pingas intempestivas tragava sem dó. A dó quando o não de sim mesma. O cigarro
também não fazia mais parte de sua solene deterioração. Uma cigana deformada
pela continuidade do tempo castrador. Vivia a deformação dos dedos enrugados no
desgaste de um tédio senil. Era jovem porém envelhecida. Era meiga porém
amargurada. Era livre no mundo, porém prisioneira do fado. Somente havia tempo
para resguardar o próximo dia sem tempo numa rotina interminável. Queria ler as
mãos delicadas de cada cliente de sua tenda nas entranhas de uma loja. Não podia, era contra o protocolo.
Não podia tocar nas mãos de seda daquelas pessoas de tecidos mágicos e
orgânicos. Os rostos coloridos das mil faces por trás de uma medíocre intenção
consumista. Sonhos se evaporavam conjuntamente a cada gole do outro invencível
em sua frente, impenetrável, intempestivo, impossível! Anacrônicos desencontros perfeitos. Cada
segundo para além do presente descartado era um corte na retina de seu destino.
Um premonitório sonho falante tinha lhe dito que sua mágica havia sido roubada por uma bruxa, e
somente furando os olhos da falsa aparição ela poderia reaver seu livre encanto
pela liberdade da vida. Não podia mais continuar. Teria que voltar a enxergar através
da simplicidade do toque. Não poder tocar aquelas tantas mãos lhe cegava o tato
da alma visionária. Ela lembrava que um dia tinha amado. Lembrava que tinha
lido suas próprias mãos diante de um espelho mágico antes de entrar para a
loja do horror. No dia dos vaticínios próprios ela foi avisada que não deveria entrar
para um labirinto sem saída. Todos os labirintos poderiam ser vencidos desde
que haja uma saída. Naquele não havia. Não havia portas, sequer paredes, muros,
curvas, arcabouços, tetos, janelas, buracos, vielas, contravenções... Nada, não havia nada em torno dessa elipse existencial. Eclipse dos
sanatórios comuns disfarçados de simples cafezinhos no fim apocalíptico da
tarde eterna. Apenas uma loja vazia cheia de óculos caros e bem acabados. Não
podia mais ver o final da história sem enxergar os outros morando sobre cutâneos da pele ardida do seu desejo ressentido. Os milagres do subterrâneo. Foi nesse último dia de verão que Morgana transcendeu o narcótico efeito da
onírica paralisia. Um instante antes de finalizar a venda, ela tremeu. A haste na metamorfose da faca. O sonho e sua
terrível libertária voz. Era uma semente do pesadelo de não viver outra vez. A última
cliente. Não havia como voltar mais atrás. Seria um novo começo numa outra
possível libertadora prisão. Um grito, e uma socialite cegada pela fatal e
intuída explosão. Morgana sem reprimir-se, enfiou cegamente aquela haste YSL
nas profundezas das carnes do olho de uma cliente misteriosa, enfeitada por
joias e plumas de faisão, que nas colunas sociais, era vulgarmente conhecida
como “ a feiticeira”.... um grito de liberdade, óculos novos nos sonhos
mórbidos apodrecidos atrás das grades, e uma algema no pulso livre para quebrar
a rotina, destruir uma determinada visão e terminar um pouco menos sem graça com a desgraça
do fim do expediente...
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